Cicatrizes de vilões aumentam preconceito sobre problemas de pele
Um dos estereótipos mais usados na ficção — o de criar vilões desfigurados — reforça a discriminação em cima das condições dermatológicas. É hora de mudar
Oh, você parece nervosa. São as cicatrizes? Quer saber como eu consegui? Vem cá. Vem! Olha pra mim”
Pra quem não reconheceu a citação, ela faz parte de uma das cenas mais icônicas dos filmes de heróis. Em “Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008)”, o vilão Coringa — interpretado pelo ator Heath Ledger —, invade uma festa e ameaça a personagem Rachel (interesse romântico do Homem Morcego) em um diálogo aterrorizante sobre a origem das suas cicatrizes.
A cena conta com todos os artifícios para provocar apreensão. Movimento de câmera rodeando os personagens, efeitos sonoros que modulam com as passagens do diálogo, e a donzela que desvia o olhar repetidas vezes até o próprio Coringa a fazer encarar suas marcas. Sim, cicatrizes são criadas para potencializar a qualidade maléfica do personagem.
Aliás, os cineastas utilizam condições dermatológicas para indicar o caráter dos personagens desde a era do cinema mudo. Em um tempo onde o vilão não poderia ser definido pela palavra falada, como no diálogo que citamos ali em cima, cicatrizes (entre outras representações visuais) eram o jeito encontrado de reforçar a sua perversidade e o diferenciar do herói.
O problema é que a persistência dessa associação no cinema pode estimular um olhar preconceituoso sobre as doenças de pele. Para entender melhor esse impacto, um time de dermatologistas analisou a aparência dos dez primeiros colocados da lista dos 100 maiores vilões e heróis de todos os tempos do American Film Institute.
No estudo, publicado no JAMA, uma das mais influentes publicações da área de medicina, os autores identificaram condições dermatológicas em 60% dos vilões. Os achados incluíam cicatrizes faciais múltiplas, alopecia, nevos faciais (manchas elevadas e pigmentadas) e até albinismo.
E essas características não se atêm ao plano estético. Os sinais na pele são frequentemente associados a um evento ou passado problemático que resultou no desenvolvimento de um caráter quase desumano. Voltemos ao Coringa e à cena onde o vilão conta a história de suas cicatrizes: sua mulher, envolvida com agiotas, sofre uma agressão que retalia seu rosto. Sem dinheiro para uma cirurgia de reparação, o arqui-inimigo de Batman quer demonstrar à sua esposa que não liga para as cicatrizes.
“Daí… Eu enfiei uma navalha na boca e fiz isto… Comigo. E adivinha? Ela não aguentou me ver! E foi embora. Agora eu vejo o lado irônico. Eu estou sempre sorrindo”
O contraste com a forma como os mocinhos são retratados só intensifica esse estereótipo. Segundo o American Film Institute, os heróis são definidos pela forma como prevalecem em circunstâncias extremas e dramatizam um senso de moral, coragem e propósito. Segundo a análise publicada no JAMA, 100% tinham uma aparência natural, sem grandes complexidades dermatológicas. Ou seja, infelizmente bondade e beleza caminham juntos. E não estamos falando apenas dos heróis de quadrinhos adaptados às telonas.
Em outro estudo, esse conduzido nas universidades Appalachian State e da Carolina do Norte (EUA), pesquisadores se debruçaram sobre 21 filmes da Disney feitos desde 1938 e, como consequência, acusaram a corporação de perpetuar o estereótipo “beleza é igual a bondade”. Exagero? Nada disso.
Na investigação, quatro avaliadores examinaram 163 personagens em uma escala de 1 a 10 em termos de “bondade”. Também ranquearam atratividade, inteligência, agressividade, envolvimento romântico e o resultado de sua vida — o famoso “e foram felizes para sempre”.
Adivinha só: à medida que as notas sobre beleza subiam, também aumentavam as de simpatia, bondade, inteligência, sucesso na vida e envolvimento romântico. Não preciso nem dizer que a maioria dos vilões foi definida como mais feia e menos virtuosa do que seus antagonistas de contos de fada.
Mas alguns heróis possuem cicatrizes, certo?
Recentemente, o escritor e ilustrador de quadrinhos Alex Ross (um dos artistas mais reconhecidos do gênero, responsável por capas icônicas como “Batman: War on Crime”, “Batman: Harley Quinn”, e as duas variações de “Justice”, todas da DC Comics), contou em seu canal no Youtube qual foi sua inspiração para um trecho marcante do quadrinho Batman: Black and White. Me refiro a uma imagem de destaque em que o Morcego aparece sem camisa, com as costas repletas de cicatrizes. Veja:
Uma das frases de Alex Ross chama a atenção: “É a ideia de que existe um preço a se pagar. Quando você é feito de pele, vai ficar destruído depois de fazer tudo isso”. A questão é como essas cicatrizes são retratadas no plano estético e no pano de fundo do personagem. Geralmente se trata de uma única linha clara, nivelada à pele, em regiões estratégicas como testa, bochecha e queixo. Em alguns casos, os heróis possuem, sim, grandes cicatrizes. Mas… elas só são reveladas em cenas dramáticas, ou heroicas.
Fonte: Este conteúdo foi originalmente publicado no site da Saúde.
Um dos estereótipos mais usados na ficção — o de criar vilões desfigurados — reforça a discriminação em cima das condições dermatológicas. É hora de mudar
Oh, você parece nervosa. São as cicatrizes? Quer saber como eu consegui? Vem cá. Vem! Olha pra mim”
Pra quem não reconheceu a citação, ela faz parte de uma das cenas mais icônicas dos filmes de heróis. Em “Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008)”, o vilão Coringa — interpretado pelo ator Heath Ledger —, invade uma festa e ameaça a personagem Rachel (interesse romântico do Homem Morcego) em um diálogo aterrorizante sobre a origem das suas cicatrizes.
A cena conta com todos os artifícios para provocar apreensão. Movimento de câmera rodeando os personagens, efeitos sonoros que modulam com as passagens do diálogo, e a donzela que desvia o olhar repetidas vezes até o próprio Coringa a fazer encarar suas marcas. Sim, cicatrizes são criadas para potencializar a qualidade maléfica do personagem.
Aliás, os cineastas utilizam condições dermatológicas para indicar o caráter dos personagens desde a era do cinema mudo. Em um tempo onde o vilão não poderia ser definido pela palavra falada, como no diálogo que citamos ali em cima, cicatrizes (entre outras representações visuais) eram o jeito encontrado de reforçar a sua perversidade e o diferenciar do herói.
O problema é que a persistência dessa associação no cinema pode estimular um olhar preconceituoso sobre as doenças de pele. Para entender melhor esse impacto, um time de dermatologistas analisou a aparência dos dez primeiros colocados da lista dos 100 maiores vilões e heróis de todos os tempos do American Film Institute.
No estudo, publicado no JAMA, uma das mais influentes publicações da área de medicina, os autores identificaram condições dermatológicas em 60% dos vilões. Os achados incluíam cicatrizes faciais múltiplas, alopecia, nevos faciais (manchas elevadas e pigmentadas) e até albinismo.
E essas características não se atêm ao plano estético. Os sinais na pele são frequentemente associados a um evento ou passado problemático que resultou no desenvolvimento de um caráter quase desumano. Voltemos ao Coringa e à cena onde o vilão conta a história de suas cicatrizes: sua mulher, envolvida com agiotas, sofre uma agressão que retalia seu rosto. Sem dinheiro para uma cirurgia de reparação, o arqui-inimigo de Batman quer demonstrar à sua esposa que não liga para as cicatrizes.
“Daí… Eu enfiei uma navalha na boca e fiz isto… Comigo. E adivinha? Ela não aguentou me ver! E foi embora. Agora eu vejo o lado irônico. Eu estou sempre sorrindo”
O contraste com a forma como os mocinhos são retratados só intensifica esse estereótipo. Segundo o American Film Institute, os heróis são definidos pela forma como prevalecem em circunstâncias extremas e dramatizam um senso de moral, coragem e propósito. Segundo a análise publicada no JAMA, 100% tinham uma aparência natural, sem grandes complexidades dermatológicas. Ou seja, infelizmente bondade e beleza caminham juntos. E não estamos falando apenas dos heróis de quadrinhos adaptados às telonas.
Em outro estudo, esse conduzido nas universidades Appalachian State e da Carolina do Norte (EUA), pesquisadores se debruçaram sobre 21 filmes da Disney feitos desde 1938 e, como consequência, acusaram a corporação de perpetuar o estereótipo “beleza é igual a bondade”. Exagero? Nada disso.
Na investigação, quatro avaliadores examinaram 163 personagens em uma escala de 1 a 10 em termos de “bondade”. Também ranquearam atratividade, inteligência, agressividade, envolvimento romântico e o resultado de sua vida — o famoso “e foram felizes para sempre”.
Adivinha só: à medida que as notas sobre beleza subiam, também aumentavam as de simpatia, bondade, inteligência, sucesso na vida e envolvimento romântico. Não preciso nem dizer que a maioria dos vilões foi definida como mais feia e menos virtuosa do que seus antagonistas de contos de fada.
Mas alguns heróis possuem cicatrizes, certo?
Recentemente, o escritor e ilustrador de quadrinhos Alex Ross (um dos artistas mais reconhecidos do gênero, responsável por capas icônicas como “Batman: War on Crime”, “Batman: Harley Quinn”, e as duas variações de “Justice”, todas da DC Comics), contou em seu canal no Youtube qual foi sua inspiração para um trecho marcante do quadrinho Batman: Black and White. Me refiro a uma imagem de destaque em que o Morcego aparece sem camisa, com as costas repletas de cicatrizes. Veja:
(Foto: DC Comics/Divulgação) |
Fonte: Este conteúdo foi originalmente publicado no site da Saúde.
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